sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Arma fina: arte ou funcionalidade?

Falar de armas finas é uma tarefa complexa e não raras vezes isenta de controvérsia. Uns advogam que são demasiado caras para o utilizador comum que apenas procura uma espingarda que seja eficaz e, de algum modo fiável; outros não abdicam delas em circunstância alguma.

Já me perguntaram: "Para quê gastar um dinheirão numa espingarda com 70 ou 80 anos, tecnologicamente ultrapassada, quando posso comprar uma moderna Beretta por uma fracção do preço? O que têm essas a mais?? Todas matam!"
James Purdey & Sons de cães exteriores (1886), uma espingarda de sonho! - pertença do armeiro norte-americano Lewis Drake and Associates

Começo sempre por responder com uma pergunta: "Quem disse que estão ultrapassadas? E porquê?"

Será porque nesta era em que as modas e o marketing invadem as nossas vidas assim o dita?
Acredito que sim, mas não perfilho de tal visão.

Pois é, todas matam...mas umas matam mais que as outras. A grande diferença entre uma espingarda fina e uma espingarda fabricada em série é a atenção ao detalhe, nada é deixado ao acaso. O fabrico manual permite que cada arma seja uma peça única adaptada às necessidade individuais de cada um, como um fato por medida.
Assim são as espingardas; um determinado comprimento de canos, um estrangulamento bem concebido, gatilhos suaves sem folgas nem arrastos, e uma coronha de boa nogueira com delgado de secção oval, um fuste perfeitamente ajustado aos canos....só a soma deste factores permite conceber uma peça única que se adapta ao atirador como uma extensão do seu próprio braço. E acreditem os mais cépticos, são estes detalhes que marcam a diferença entre abater aquele narceja que se furta em rápidos "crochets", dada já como irremediavelmente perdida e, de repente quase que por milagre é atingida mortalmente; ou numa "barrage" de uma prova de tiro aos pombos, com avultados prémios em jogo, sai um daqueles pássaros "imatáveis" e com um tiro mal centrado há uma aba da chumbada que lhe parte uma asa e nos oferece a vitória. Só uma espingarda de excelência consegue tais proezas. Nesse sentido vale a pena pensar se não valerá mais a pena considerar a aquisição de uma arma desse tipo, que pese embora o seu elevado preço é um investimento para o futuro - acredite que ela irá perdurar durante muitas gerações após a sua partida deste mundo e, servirá os seus descendentes com a mesma qualidade e fiabilidade com que o serviu a si - do que comprar duas ou três espingardas baratas que a curto prazo só trarão problemas e arrelias ao seu proprietário, não falando já nas perdas em termos de resultados seja na caça ou no tiro de stand.
Não será que bem vistas as coisas o barato acaba por sair caro?

Imaginem ainda esta hipótese:

Caçando às perdizes nas agrestes serras de Mértola, onde o terreno é difícil e os pássaros são bravos. Nos dias que correm todos sabemos que a caça está cara, crises há parte é um facto e, assim a maioria de nós não se poderá dar ao luxo de usufruir de um elevado número de jornadas por ano.
Se as oportunidades são menos então há que saber aproveitá-las melhor, não deveremos pois permitir-nos errar muitos tiros, ao menos devemos evitá-lo. Se considerarmos que uma perdiz brava num bom couto custa em média 35€, e que sendo pássaros bravos raramente nos sairão perto, o material de que dispomos acaba por ser, bem feitas as contas, o mais barato. Fazendo esse simples cálculo, rapidamente fará sentido fazer tudo ao nosso alcance para aumentar as nossas hipótese de sucesso e, aí a arma desempenha um papel importantíssimo. Uma arma que faça uma boa e eficaz distribuição de tiro, tenha uma coronha bem conformada às características físicas do atirador e um perfeito equilíbrio - entenda-se distribuição geral do peso - é meio caminho andado para o sucesso. Produzirá tiros mais regulares, com melhores índices de impactação e perfuração, o que contribuirá para aumentar a confiança do atirador e obter abates mais limpos; não falando já que ao fim de 5/6 horas a andar no monte uma arma com um peso entre os 3kg e os 3kg200 podem aliviar-nos de muita fadiga comparativamente a outras mais modernas com pesos na ordem dos 3kg500, bem mais adequadas ao tiro de stand.

Agora diga-me excelentíssimo leitor: Não vale mais utilizar aquela bela arma do seu avô, que tanta caça terá morto, com bons cartuchos de carga adequada em vez daquele "cêpo" pesadão que o armeiro da moda lhe tenta impingir?

Não dá muito mais gozo abater uma galinhola com aquela espingarda finamente gravada, quiçá com cães exteriores, e magníficos canos que tinem como cristal do que com aquela horrível semi-automática que, de cada vez que é disparada, produz um horrível ruído semelhante a uma metralhadora que quase nos transporta para um cenário de guerra tipo Vietnam!??

Cada um é livre de acreditar no que bem entender, e deverá atirar com aquilo que mais lhe convém e transmite confiança, mas posso afiançar que nenhuma Benelli bate o equilíbrio e a "vivacidade" de uma veterana Galand com 76 cm de cano, uma fina coronha inglesa capaz de manter ambas as mãos - a que comanda o fuste e a que segura a coronha - ao mesmo nível, permitindo que a arma quase "dance" nas mãos do atirador.
Só este harmonioso conjunto de equilíbrio e proporção permitem aqueles lances em que dizemos que "fizemos um tiro impossível"; é certo que nenhuma arma por melhor que seja se opera sozinha, o atirador é quem comanda, mas acreditem...ajuda muito!

Por isso tiver aquela velha calibre 16 de canos justapostos que herdou de um familiar pendurada sobre a lareira faça um favor a si mesmo...tire-a de lá e, se estiver em condições use-a. Use-a com orgulho e com a reverência que ela merece: compre bons cartuchos com cargas adequadas, limpe-a com carinho, mas use-a. Se não tiver a certeza que a arma esteja em condições de dar tiros leve-a a um armeiro competente (Sim, ainda os há!) para inspecção prévia e, certamente alguma avaria que exista não estará para além das hipóteses de reparação.
 Ela será arte sem dúvida, mas é arte funcional, foi feita para dar tiros.
No fim verá que os seus resultados provavelmente melhorarão, terá lances que o preencherão muito mais e destacar-se-á por certo dos seus companheiros que atiram todos com a mesma coisa....e não é isso a felicidade?

Pense nisso...

Introdução

Bom dia a todos!

Hoje o dia amanheceu algo soalheiro mas as nuvens teimam em atrapalhar...quanta monotonia!

Hoje são me sinto particularmente inspirado para iniciar esta aventura de seguir as pegadas dos grandes armeiros europeus.
Falo em armeiros europeus pois foi aqui no "Velho Continente", apesar de todos os seus defeitos (que actualmente parecem ser mais do que nunca!), que se produziram algumas das maiores obras primas que o mundo armeiro já viu.
Inglaterra, Bélgica e Itália estiveram sempre no topo dos melhores fabricantes mundiais de espingardas de cano liso; Alemanha e Áustria - grandes entusiastas da caça maior - eram "Reis e Senhores" a fabricar magníficas carabinas; num passado mais recente surge a Espanha, com os seus artesãos da antiga cidade de Eibar (País Basco), a apresentarem produtos de alta qualidade capazes de competir em qualidade e preço com alguns dos melhores.
Escola de Armaria Léon Mignon - Líége, Bélgica; década de 20 aprox.

A seu tempo faremos esta jornada juntos. Tentarei explicar dento das minhas possibilidades e, de forma tão clara quanto possível, todos os assuntos englobados neste Universo vasto da armaria fina.

Convém contudo referir que sendo o tema central deste Blog as armas denominadas "Best Quality, os meus posts irão dar particular enfoque às armas Inglesas e Belgas. Não apenas porque são as minhas preferidas, mas porque é uma verdade universalmente aceite, que são as melhores armas do mundo; salvaguardando obviamente algumas honrosas excepções oriundas da Península Itálica!

Espingarda de caça Auguste Francotte, fabricada em 1936 - Pertença do autor.
Dominarão as armas de canos justapostos, particularmente de platinas, com ou sem cães exteriores, pois foram essas que estabeleceram o padrão daquilo que é uma "Best Quality". Na verdade algumas das maiores caçadas da história foram feitas com armas de canos justapostos, cães exteriores, e disparando cartuchos de pólvora preta; fiquem os mais cépticos sabendo que a sua eficácia era tal que se estabeleceram recordes que, hoje serão praticamente impossíveis de igualar!
Mas sobre tudo isso falaremos mais tarde.

Para já quero apenas fazer uma nota orientadora dos temas que irei abordar; e nem só de armas falarei. Sendo as armas de caça o meu tema central e de eleição, irei abordar outros temas tão diversos como, balística, histórias de caça, tiro de stand e grandes personalidades deste mundo. Desde o mais comum caçador ao mais consagrado atirador de pombos, passando pelos inúmeros Mestres Espingardeiros que tenho vindo a conhecer, e aqui no nosso Portugal existem ainda alguns!

Stand de tiro do Clube de Caçadores do Porto - O mais antigo clube de tiro português com 135 anos de história; fundado em 1878.

Bem Vindos - A espingarda da minha infância

Antigo modelo de cães exteriores da célebre Manufacture "Liégeoise d'Armes à Feu";
note-se a báscula dotada de orelhas de reforço lateral e terceiro trinco tipo "Greener" para maior robustez.
Neste meu primeiro post gostaria antes de mais de dar as Boas Vindas a todos os entusiastas dos magníficos desportos que são a caça e o tiro desportivo com armas de caça.

Decidi começar este blog como concretização de uma paixão antiga, tão antiga como a minha própria existência, as espingardas de caça e, particularmente as clássicas espingardas finas.
Não se admirem pois os excelentíssimos leitores se por aqui não virem qualquer menção feita a espingardas semi-automáticas ou modernas espingardas fabricadas em série.

Para os menos informados por "Espingarda Fina" entende-se a melhor e mais perfeita peça, que a engenharia associada à ancestral arte de espingardeiro conseguem produzir. Assim não me inclinarei sobre qualquer outra arma que não as que se inserem nesta categoria, e darei particular enfoque àquelas que considero serem as mais belas e bem construídas armas da história, as vulgarmente apelidadas de "Vintage Doubles".
Falo nomeadamente de espingardas de dois canos, justapostos ou sobrepostos, construídas entre os finais do Séc. XIX e a primeira metade do Séc. XX; a chamada "Idade do Ouro"

Dir-me-ão alguns "Mas esse assunto já está explorado e mais que gasto!"; estará???

Saberão as gerações mais novas, entre as quais eu próprio me insiro, as características únicas de uma espingarda fina?

Como se constrói?

Quais os processos envolvidos?

Quantas horas são necessárias para produzir tal peça?

Quantos artesãos são necessários para o fazer?

Não creio; melhor sei com alguma margem de segurança que a maioria não sabe. Uns por desinteresse, que é legítimo, outros simplesmente porque não têm quem os ensine, o que já é triste pois ignoram um universo riquíssimo e, em meu entender é dever daqueles que sabem alguma coisa partilhar com as gerações mais novas. Não se deve deixar o conhecimento e a tradição desta nobre arte morrer por inércia.

Lancei muitas perguntas, adiantei-me, e saltei uma parte muito importante...não me apresentei! Prometo que irei dar as respostas em breve!

O meu nome é Paulo Brito, tenho 27 anos, sou Licenciado em Relações Internacionais e Caçador desde que me conheço por gente.
Nasci numa família de caçadores e atiradores, e desde muito cedo as armas, os cães e o cheiro da pólvora acabada de queimar fazem parte do meu quotidiano. O meu Pai incutiu-me esta paixão e, tive a sorte de ter sido iniciado neste mundo das armas muito cedo.
 Comecei a atirar com 8 anos de idade, na altura com uma espingarda Liégeoise de calibre 32, com canos justapostos de 76 cm e cães exteriores. Era uma arma magnífica pertença de um tio meu, apesar dos seus canos longos era leve e muito bem equilibrada, com ela matei muita passarada na quinta onde nasci, e jamais esquecerei as célebres caçadas às ratazanas que teimavam em atormentar a nossa criação. Daí até começar a acompanhar o meu Pai nas suas jornadas às perdizes e narcejas foi um pequeno salto e, daí até me tornar atirador de stand foi um salto ainda menor!
Ao longo dos anos tenho conhecido muita gente; grandes caçadores, atiradores de grandes recordes, armeiros e espingardeiros....com todos aprendi muito, e com eles continuo a aprender, e por isso me considero privilegiado.

Graças a todos eles e à minha paixão (alguns dirão obsessão!) pelo conhecimento das armas, tenho dedicado boa parte do meu tempo a ler, pesquisar, trocar ideias e experimentar armas e cartuchos. Tudo isto contribuiu para que viesse a adquirir algum conhecimento sobre esta matéria, por vezes prejudicando outros aspectos da minha vida pessoal...namoradas, estudos, noites de farra...tudo ficava para trás quando as armas vinham ao barulho.
Muito aprendi, muito mudei, mas uma permaneceu na minha memória....a Liégeoise de calibre 32 e a "doença incurável" que me pegou das armas finas.

Comecei este blog essencialmente por amor a esta arte e espero que com o meu modesto conhecimento, possa desmistificar algumas ideias erradas que ouço recorrentemente, e quiçá trazer alguma luz sobre um tema por vezes envolto no maior mistério para aqueles que se interessem por aprofundar estes assuntos.
Espero consegui-lo; e perdoem-me aqueles que me possam achar pretensioso, mas faço isto de forma apaixonada e honesta.

Finalizo este post com uma dedicatória:

Ao meu querido irmão Miguel de Brito, meu companheiro de tantas caçadas e outras aventuras, que o destino não permitiu que cumprisse as quatro estações da vida e, levou de forma abrupta da nossa convivência em Agosto de 2012.
A ele dedico estas linhas, em memória das caçadas que fizemos e daquelas que ficaram por fazer...e foram tantas! Onde quer que esteja sei que estará a sorrir ao me ver iniciar esta ideia já tão antiga e, se Deus quiser, um dia voltaremos a caçar narcejas juntos com as nossas Francottes até à eternidade.

Até já Mano...

O meu irmão Miguel na nossa última caçada juntos. Porto Alto; 2011.